Jogar videogame não é mais brincadeira, é futuro

João Victor Campos
7 min readMar 14, 2021
Raphael “eXit” Lacerda — Arquivo Pessoal

Era uma habitual tarde de verão no Rio de Janeiro quando o gonçalense Raphael Marques de Lacerda, de 24 anos, e seus colegas de time foram inesperadamente parados por desconhecidos enquanto andavam pelas ruas da Barra da Tijuca, em direção ao Parque Olímpico, onde disputariam um campeonato nas próximas horas. O animado grupo se identificou como fãs e pediu para tirar diversas fotos com eles, desejando sorte à equipe nas próximas partidas. Diferentemente do que se possa imaginar, Raphael não é competidor de nenhuma das modalidades esportivas tradicionalmente conhecidas no país, mas sim de uma categoria que tem se tornado cada vez mais popular entre as novas gerações, com uma legião de torcedores: ele é atleta de eSports, os esportes eletrônicos.

Conhecido no meio gamer pelo o apelido “eXit”, Raphael é jogador profissional de Counter-Strike: Global Offensive (CS:GO), jogo coletivo de tiro em primeira pessoa lançado em 2012 pela empresa norte-americana Valve Corporation. Segundo estimativas da empresa, no ano passado o jogo bateu a marca de mais de um milhão de pessoas jogando simultaneamente. Na cena competitiva de CS:GO, o Brasil é uma das principais potências: além de ser um verdadeiro sucesso entre os adeptos casuais, os pro players brasileiros estão entre os melhores do planeta e já conquistaram títulos mundiais. Atualmente, o país é o quarto na lista das nações que mais faturaram com o videogame.

Mesmo sendo de São Gonçalo, o esportista cresceu em Niterói, para onde se mudou aos 4 anos. Ainda criança, ganhou seu primeiro videogame, um Super Nintendo, que sempre gostou muito de jogar. Torcedor do Flamengo, os esportes fizeram parte da sua vida desde cedo, com o futebol sendo a primeira paixão e, posteriormente, o vôlei. “Quase sempre eu só jogava futebol. Era o meu vício”, Raphael conta rindo. Em 2008, presenteado pelos pais, ganhou o seu primeiro computador e, com isso, começou a se aventurar na primeira versão do Counter-Striker, lançada em 2000, que conheceu na casa de uma tia. O jogador iniciou na modalidade com apelidos relacionados ao próprio nome, até que descobriu um time que se chamava ExiT e passou a adotar a alcunha, a qual foi “aprovada” pelos amigos e, por isso, a manteve. Daí para frente, não largou mais: “Até tiveram algumas épocas em que eu parava, mas nunca parei 100%. Sempre foi algo que me interessou muito. E já se foram quase 14 anos jogando.”

Raphael, que virou jogador profissional em 2017, relata que quando era mais novo não podia participar dos campeonatos locais que aconteciam nas lan houses da capital Rio de Janeiro, porque seus pais achavam muito perigoso que fosse sozinho de Niterói, cidade em que morava na época, para lá. “Desde que comecei a jogar, sempre fui muito competitivo. Competia entre os meus amigos e depois passei a disputar online”, diz o esportista, que naquele período jogava mais League Of Legends (LoL), um dos jogos mais populares atualmente, mas que não era uma paixão sua.

Em 2015, ano em que estava cursando pré-vestibular, voltou à franquia Counter-Strike: “Quando passou o ENEM e eu não tinha mais nada para estudar, resolvi dar uma chance ao CS:GO e foi a melhor decisão da minha vida. Desde o início, percebi que tinha potencial para competir nele e comecei a jogar mais sério”, conta. No final daquele ano, começou a entrar em alguns times brasileiros e a ganhar campeonatos do jogo de maneira individual. Em 2017, o reconhecimento internacional chegou: ele foi convidado a jogar profissionalmente pelo time luso-brasileiro Sharks Esports, equipe da qual faz parte até hoje. Isso o levou a morar em Portugal, nos EUA e agora na Sérvia. O jogador diz que ficar longe da família e dos amigos não é uma tarefa fácil, porém tem sido um sacrifício necessário para alcançar os seus objetivos.

Filho mais novo de um síndico com uma vendedora, Raphael conta que, se não fosse pelos jogos, seguiria carreira na área da Administração, curso que fez três semestres antes de se dedicar profissionalmente ao jogo. Ele admite que fazia a graduação mais pelos pais do que por vontade própria, pois já pensava em se tornar um atleta de eSports. “Eu acredito que tentaria conseguir um emprego bom em algum banco, no mundo corporativo. Mas, nunca foi a minha primeira opção não”, diz o jogador. De início, seus pais, que continuam morando em Niterói, não sentiam segurança em ver o filho apostando em uma profissão tão nova no Brasil. “Nessa época, eu não ganhava para jogar. Era por paixão mesmo. Eles queriam que eu trabalhasse em algo concreto, que trouxesse retorno.” A situação mudou quando a proposta de morar no exterior chegou: “Quando fui convidado para jogar em Portugal, sentei com eles e expliquei tudo direitinho. Falei que era salário, com contrato assinado e que eu queria muito. Eles sentiram que era algo sério e a partir daí sempre me apoiaram 100%”, conta o gamer.

Quando questionado sobre considerar-se um atleta, Raphael é firme em dizer que o empenho para ser um gamer profissional é bem parecido com o dos esportistas tradicionais: “Tem que ter dedicação, treinar bastante a mente, condicionar o corpo. Só não tem tanto esforço físico, sendo algo muito mais mental.” Entretanto, ele não concorda com uma possível unificação da categoria com os demais desportos. “Tem uma galera que quer ver (o CS:GO) nas Olimpíadas e etc. Para mim, não faz sentido porque são coisas diferentes. Tem espaço para as competições dos esportes físicos e para os digitais. Isso acaba ajudando a gerar ainda mais preconceito pela área.”

Sobre a parte financeira de ser um pro player, Raphael diz que quando começou o cenário brasileiro profissional de CS:GO estava “engatinhando”: apenas três times pagavam para seus integrantes. Já existiam jogos grandes e estabilizados como o LoL, com salários altos e premiações robustas. Hoje em dia, o panorama melhorou, com a maioria dos atletas sendo remunerados, porém não se tem uma média salarial. “Varia muito de caso para caso. O valor depende do contrato assinado, do tamanho do time, das competições disputadas e dos patrocínios obtidos. Nos maiores times nacionais, acredito que o salário seja uns R$ 3 mil”, ressalta. “As equipes do exterior pagam muito mais. Os melhores salários estão na Europa e nos EUA, geralmente na base de uns R$ 8 mil a R$ 10 mil”, estima.

Impossibilitados de voltarem a Portugal e se fixando atualmente em Belgrado, pois a Sérvia é um dos poucos países europeus em que a entrada de brasileiros está liberada no contexto da pandemia de Covid-19, Raphael e seus colegas de equipe vivem uma pesada rotina de treinos. Acordam, no máximo, até as 10h, pois a partir das 11h já estão todos em seus computadores para fazerem treinos táticos, nos quais conversam durante duas horas sobre as estratégias do dia, elaboram suas jogadas ensaiadas e repassam toda a parte teórica do jogo. Às 14h, após a pausa para o almoço, os pro players jogam contra outros times, realizando treinos práticos. “Nesse meio é muito normal treinar com os adversários, pois, diferentemente do futebol, em que se tem mais de 22 jogadores e um treino de 11 contra 11 é possível, no CS:GO os times têm cinco jogadores somente e se faz preciso jogar com outras equipes para o treino ser eficaz”, explica. Esses treinos práticos duram geralmente oito horas e só depois os atletas têm um horário livre.

A pandemia de Covid-19 alterou completamente os planos do Sharks em 2020. Por só ter jogadores brasileiros no momento, a equipe retornou ao Brasil e passou a temporada competitiva inteira no país. Com medo do possível contágio que poderia ocorrer em uma viagem para o exterior, eles disputaram somente alguns campeonatos nacionais menores, ao invés dos internacionais que estão habituados. “Nós iríamos passar mais uma temporada nos EUA, mas se tornou totalmente inviável”, lamenta Raphael.

Os campeonatos de CS:GO não ficam trás aos dos outros esportes: podendo ser virtuais ou presenciais, são sediados em diversas cidades pelo mundo, com direito a estádios lotados de torcedores nas fases finais. Quando perguntado sobre qual edição foi importante para ele, Raphael conta que em 2018 o Sharks ganhou a ESL LA League, uma competição sul-americana criada pela Electronic Sports League — a maior empresa de eSports do mundo e a mais antiga ainda em operação. “Esse torneio é tipo uma ‘Libertadores’, pois reúne os melhores times da América Latina e a gente foi campeão. Foi o primeiro campeonato grande que ganhei e isso me marcou bastante”, diz o gamer. Essa vitória garantiu ao time uma vaga no mundial da categoria, o ESL Pro League. Disputado em dezembro daquele mesmo ano, com premiações de até 250 mil dólares, a equipe terminou na 11ª posição.

Sobre a estabilidade de sua profissão, ele conta que, por ser uma categoria recente e muito ligada às novas gerações, há poucos jogadores profissionais com mais de 35 anos. “Vários (atletas) simplesmente param de competir ou viram treinadores. Diferentemente dos esportes tradicionais que já existem há mais tempo, no ‘nosso’ meio ainda não rolou nenhuma aposentadoria por questões de idade ou perda de performance física. Alguns jogos ‘morrem’, mas sempre aparecem novos para substituir”, diz.

O gamer, que não gosta de ficar pensando no futuro, diz que seu maior sonho é finalmente ganhar o mundial: “Sem sombra de dúvidas, esse é o meu objetivo atual, minha prioridade.” No ano passado, Raphael foi considerado o quarto melhor jogador brasileiro de CS:GO pelo portal especializado DRAFT5: “Receber esse reconhecimento me deixou muito feliz, porque foi um ano muito difícil para mim e para o meu time. Além de toda a pandemia, passamos por muitas mudanças. Essa conquista indica que estou no caminho certo.”

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João Victor Campos

Aluno de Jornalismo da UFRJ, apaixonado por vários assuntos e sempre disponível para boas conversas